sábado, julho 26, 2003

Azul

Aqui há um ano atrás, apareceu num site espanhol um conto que diziam ser de José Saramago. Nunca ninguém provou que o fosse, mas o que interessa neste caso, era o pedido que faziam aos leitores para que estes dessem uma continuação ao dito conto. Eis o conto (en castellano) e de seguida a minha proposta:

Anoche hice un viaje a Marte. Pasé allí diez años (si la noche dura en los polos seis meses, no sé por qué no han de caber diez años en una noche marciana) y tomé muchas notas sobre la vida que allí llevan. Me comprometí a no divulgar los secretos de los marcianos, pero voy a faltar a mi palabra. Soy hombre y deseo contribuir, en la medida de mis escasas fuerzas, al progreso de la humanidad a la que enorgullece pertenecer. Este punto es muy, muy importante. Y espero, si algún día los marcianos me vienen a pedir cuentas de mis actos, es decir, del perjuicio cometido, que los no sé cuantos billones de hombres y mujeres que hay en la tierra se apresten, todos, a mi defensa.

En Marte, por ejemplo, cada marciano es responsable de todos los marcianos. No estoy seguro de haber entendido bien qué quiere decir esto, pero mientras estuve allí (y fueron diez años, repito), nunca vi que un marciano se encogiera de hombros. (He de aclarar que los marcianos no tiene hombros, pero seguro que el lector me entiende.) Otra cosa que me gustó en Marte es que no hay guerras. Nunca las hubo. No sé como se las arreglan y tampoco ellos supieron explicármelo; quizá porque yo no fui capaz de aclararles qué es una guerra, según los patrones de la tierra. Hasta cuando les mostré dos animales salvajes luchando (también los hay en Marte), con grandes rugidos y dentelladas siguieron sin entenderlo. A todas mis tentativas de explicación por analogía, respondían que los animales son animales y los marcianos son marcianos. Y desistí. Fue la única vez que casi dudé de la inteligencia de aquella gente.

Con todo, lo que más me desorientó en Marte fue el no saber qué era campo y qué era ciudad. Para un terrestre eso es una experiencia muy desagradable, os lo aseguro. Acaba uno por habituarse, pero se tarda. Al fin, ya no me causaba extrañeza alguna ver un gran hospital o un gran museo o una gran universidad (los marcianos tienen esto, como nosotros) en lugares para mí inesperados. Al principio, cuando yo pedía explicaciones, la respuesta era siempre la misma: el hospital, la universidad, el museo estaban allí porque eran precisos. Tantas veces me dieron esta respuesta que pensé que mejor sería aceptar con naturalidad, por ejemplo, la existencia de una escuela, con diez profesores marcianos, en un sitio donde solo había un niño, también marciano, claro. No pude callar, desde luego, que me parecía un desperdicio que hubiera diez profesores para un alumno, pero ni así los convencí. Me respondieron que cada profesor enseñaba una asignatura diferente, y que la cosa era lógica.

En Marte les impresionó saber que en la tierra hay siete colores fundamentales de los que se pueden sacar millones de tonos. Allí sólo hay dos: blanco y negro (con todas las gradaciones intermedias), y ellos sospecharon siempre que habría más. Me aseguraron que era lo único que les faltaba para ser completamente felices. Y aunque me hicieron jurar que no hablaría de lo que por allá vi, estoy seguro de que cambiarían todos los secretos de Marte por el proceso de obtener un azul.

Cuando salí de Marte, nadie vino a acompañarme a la puerta. Creo que, en el fondo, no nos hacen caso. Ven de lejos nuestro planeta, pero están muy ocupados con sus propios asuntos. Me dijeron que no pensarán en viajes espaciales hasta que no conozcan todos los colores. Es extraño, ¿no? Por mi parte, ahora tengo mis dudas. Podría llevarles un pedazo de azul (un jirón de cielo o un pedazo de mar), pero ¿y después? Seguro que se nos vienen aquí, y tengo la impresión de que esto no les va a gustar.

Ahora la continuación

Passou-se a noite, passaram dez anos. Como estaria o meu planeta após tanto tempo sem mim, teria ganho côr com a música e a poesia? Teria perdido côr com a guerra e a miséria? Uma noite de dez anos é sem dúvida uma noite de Inverno,
(Se fosse de Verão o dia é que durava dez anos, a noite ficava-se pelos sete ou oito)
e quando cheguei a manhã era chuvosa, com alguns guarda-chuvas e impermeáveis, com muitos carros parados, de faróis acesos, com movimentos repetitivos dos limpa pára-brisas, num hipnotizar contínuo de todas as almas terrestres. Tinha passado uma noite,
(ou dez anos, tanto faz)
e nada, nada tinha mudado, uma mão invisível a empurrar cada ser humano para o local de trabalho, os mesmos semblantes, a mesma alegria falsa, o mesmo timbre nas discussões, tudo igual. Perguntei para mim, estive cá ontem ou há dez anos? As duas respostas estavam correctas, dez anos na terra são exactamente iguais a uma noite, apenas mais umas brancas no cabelo, mais uma cicatriz ou outra, um automóvel novo, um filho na universidade, um aumento de ordenado, mas a mesma vida cinzenta. Cinzento... Faz-me lembrar Marte, eles apenas conheciam o cinzento em vários tons, para além do preto e do branco. Mas eu não, vivo na Terra, aquele planeta que é azul por fora e cinzento por dentro. Abri os olhos, olhei à minha volta e tornei-me Marciano, é tudo cinzento. Laranjas cinzentas, Guarda-chuvas cinzentos, automóveis cinzentos, violetas cinebntas, rosas cinzentas, caras cinzentas, alegrias cinzentas, sorrisos cinzentos, olhos cinzentos, enfim, em duas palavras, massa cinzenta. Descobri o desinteresse que é a terra, acordar, correr para o emprego, comer e dormir. Acordar, correr para o emprego comer e dormir. Acordar
(hoje é sábado)
comer, ver televisão, comer e dormir. Acordar, levar os sogros a uma visita à beira-mar, comer com eles, insistir em pagar a conta, regressar e dormir.
Como é que estas pessoas conseguem ver alguma côr? As côres só lhes servem para os semáforos, nada mais, na terra não existe o daltonismo, existe a cegueira. Não há verde da relva, azul do céu ou amarelo da praia, há cinzento. Não há castanho nos olhares, ciano nos pensamentos ou magenta nos sentimentos, há cinzento. Como é que eles descobriram as cores? Como é que eu distinguia as cores no dia de ontem?
(ou há dez anos?)
Não vejo, não posso admitir que elas existam, e aquela explicação do semáforo é demasiado ténue. Decidi caminhar, pelas ruas cinzentas, pela chuva cinzenta, de água cinzenta, com átomos cinzentos de oxigénio cinzento e hidrogénio cinzento. Tomei um pequeno almoço cinzento numa confeitaria cinzenta e entrei em nova rua cinzenta. Sentia algo estranho em mim,
(é normal, não é todas as noites que se fica daltónico)
e pensava como iria viver depois desta visita a Marte, inundado pela infelicidade, e sem qualquer hipótese de regressar
(Tantas vezes tinha sido proferida a palavra cinzento na narrativa que a Associação de Viajantes Imaginários da qual eu fazia parte expulsou-me por ter violado os seus estatutos.)
De repente ouvi um disparo. Um homem com um lenço na cabeça caia e no fim da minha rua cinzenta um carro militar retirava-se. Corri para o homem que jazia no chão, deitado sobre uma poça de sangue vermelho, de um prédio saiu uma mulher de túnica com o filho ao colo chorando, abraçou-se a ele e eu também chorei. Mesmo sem conhecê-lo, mesmo não sabendo quem era, apenas por ver aquele sangue vermelho sob a chuva. Sim, o sangue era vermelho não tinha dúvidas, perdi o daltonismo, e sei bem porquê.
Os habitantes da terra conhecem as côres porque viram o vermelho do sangue, foi essa a côr com que nasceram, e a côr que os há de acompanhar por toda a vida. Tinha-me esquecido da revolta interior, da raiva e da injustiça quando estive em Marte. Tinha-me esquecido do sangue. Os marcianos nunca viram sangue, nunca mataram ninguém e por isso não sabem as côres, trocava todas as côres e tons, por muito que me custasse essa ausência, pela vida deste homem que caiu aqui, apenas porque tem outra côr e usa um lenço na cabeça.
Levantei-me e pensei, vou regressar.
Mas não regressei, não vou virar as costas ao meu mundo, vou passar uma noite inteira, dez anos, dez séculos a lutar contra a côr vermelha que se dissolve na água da chuva cinzenta, e quem sabe se no fim dessa luta, na qual o mais importante é mudar a mentalidade das pessoas, possamos ser quase iguais aos Marcianos, mas distinguindo o arco-íris de um sorriso de uma criança e o azul do céu a beijar o mar