quinta-feira, agosto 21, 2003

Arqueólogo

Carta a um arqueólogo do Futuro

Quando por entre pedras fatigadas
encontrares este papiro frágil amarelado
não quero que me julgues por ter vivido
na época em que vivi.
Nem quero que julgues uma época
do alto do teu século trinta e um,
sem saberes quem somos.
Nós, no meio de um bosque de estrelas
Só temos dois olhos
Só temos duas mãos

Ao lado desta carta que te deixo
deves encontrar Vénus de Brassempouy em Betão
Vitória de Samutrácia em televisão,
e a Vénus de Milo num centro comercial
o centro de um país que era Portugal
Mil anos passaram
Tens que compreender
Só temos dois olhos
Só temos duas mãos

Peço perdão pelo dióxido de carbono que libertei
Pelo oxigénio que consumi, pela obra que não deixei
Peço perdão por nós
(já que ninguém pede)
uma civilização que nada deixou
para ser estudada
não procures nada mais
deixa-nos em paz debaixo da nossa terra
não nos preocupámos contigo
não te preocupes connosco
só temos dois olhos
só temos duas mãos

Não há poetas para procurar
Não temos citânias nem ânforas
Temos cimento e vidro nu
Nada pudemos fazer
O nosso mundo é frio e cru
Somos tão frágeis como este papel
Somos tão fósseis como este papel
Somos tão velhos como este papel
No nosso tempo
estar preso é estar livre
Estar livre é estar preso
Por incrível que pareça
Temos dois olhos
Temos duas mãos

Por isso arqueólogo
Pega na pá e na terra
Enterra-me, por favor!
Enterra-me
E se ainda fores a tempo
E se ainda estiveres vivo
Salva o teu mundo
Procura a liberdade
Nós não conseguimos hoje
Agora tento acordar os de amanhã
Nós não temos nada
Estamos de baixo da terra
Mas tu,
Tens dois olhos
Tens duas mãos

E tens o mundo
Espero eu.