Como o Terras do Ave não saiu a tempo de sair o meu artigo natalício, vou publicá-lo aqui com o desejo de um bom natal a todos!
“A Todos Um Bom Natal”
Subsídios para a interpretação sócio-etnográfica: Uma contribuição.
O tema “A Todos Um Bom Natal”, que o Coro de Santo Amaro de Oeiras lançou em 1986 constitui o expoente máximo da música contemporânea portuguesa. Lúcia Carvalho e César Batalha são os nomes que conseguiram elevar os patamares da música natalícia desde um tom normalmente de cariz popular (exemplos disso são o Noite Feliz e o Jingle Bells) até à erudição absoluta atingida com o tema em análise neste artigo.
Em primeiro lugar a música. Já alguém disse que ouvir um orgão tocando Johann Sebastian Bach era ouvir a Voz de Deus, mas tal afirmação só tem cabimento no pré-A Todos Um Bom Natal. É certo que em termos musicais, sobretudo na vertente dos sininhos, é perceptível um pouco da estética barroca de Bach, mas a obra de Santo Amaro de Oeiras extrapola todos os sentimentos do autor. Existe naquela composição um misto da poesia espiritual do Ave Maria de Franz Schubert com a prosa obscura dos coros do Requiem de Wolfgang Amadeus Mozart que não é perceptível ao ouvido mais desinformado. Este contraste possibilita uma diferenciação cromática que chama a perfeição da Nona Sinfonia de Ludwig Van Beethoven, a suave constatação dos silêncios eleva-nos a um estado de divino esplendor com ligações óbvias ao ascético sentimento natalício.
A poesia das palavras merece uma análise sistemática a todas as sílabas, já que o tom épico do poema remete-nos para uma Odisseia em que Homero adquire barbas brancas e um fato vermelho. Iniciando a investigação pelos solos, o apreciador depara-se logo com um chamamento a Vergílio Ferreira e à sua “Manhã Submersa” quando se ouvem os sinos a tocar e a alegria no ar. A utilização da repetição, que surge no segundo solo (“Nesta manhã de Natal / Há em todos os países / Muitos milhões de meninos, felizes”) pressupõe um recalcar da ideia, fugindo mais tarde para uma plataforma marxista em que todas as crianças são iguais para contrabalançar o teor religioso da poesia. “Vão aos saltos pela casa / Descalças ou com chinelas / Procurar suas prendas, tão belas” é a estrofe seguinte. Aqui já se vislumbra um regresso à intervenção social, sobrepondo-se esta ideia ao solipsismo da primeira estrofe. Uns andam descalços, outros de chinelas significa o choque da economia de mercado que retira a visão idealista do natal, hoje é uma festa consumista onde o problema da indústria portuguesa do calçado pode sempre entrar. Saltando para o Refrão, ainda é cedo para se descobrir se se trata de um pos-neorealismo (ligado ao marxismo referido anteriormente) ou um pré-santoamarooeirismo, já que esta nova corrente filosófica poderá estar a dar os primeiros passos. O que surge por detrás desta dúvida é o segundo verso. Porque se utiliza o conjuntivo? Uma forma de escapar ao solipsismo de outros versos? Uma aproximação existencialista que relativiza o nosso ego? É muito difícil encontrar uma resposta. Talvez a humanidade ainda não tenha capacidades de perceber este refrão de um pós-modernismo infindável. Que frase misteriosa esta: “Que seja um bom natal para todos vós”.