quinta-feira, julho 31, 2003

Conto

Comecei há poucos minutos este conto. Vou publicá-lo ao longo dos próximos dias, não porque queira atrair pessoas para o blogue para irem vendo a continuacão, mas porque tudo o que escrevi até agora está aqui em baixo e acho interessante a ideia de escrever um conto enquanto outros o lêem. Penso que vai ter umas três ou quatro partes e amanhã devo continuá-lo. Espero que gostem e critiquem!

Mão Invisível (1ª Parte)

José era carpinteiro porque seguira a arte do pai, aliás o seu nome não tinha caído do céu, era a homenagem que o progenitor fez ao mais famoso profissional da área. A sua carpintaria ficava perto do centro da aldeia de Madeira. Era uma aldeia que tinha nome de ilha, mas o único mar que a rodeava era um mar de montanhas e de isolamento. As casas de Madeira, como o nome indica, eram todas de pedra e de apenas um piso, incluindo a própria carpintaria de José. As casas tinham este material porque todos os habitantes da povoação sabiam que para construir casas de pedra não necessitavam de matar nenhum ser vivo. Então, porque é que existe uma carpintaria em Madeira se ninguém quer matar seres vivos? Porque as portas de pedra que as pedreiras faziam eram demasiado pesadas para a população idosa as abrir. E como em Madeira não existia mais nenhuma matéria prima para além das rochas e do material homólogo à localidade, tinham que ser construídas portas de madeira. Foi assim estabelecido um código de ética pela Junta de Freguesia, postulava que cada casa teria que possuir oitenta porcento de portas de pedra e vinte porcento de portas de madeira. Era a forma dos idosos poderem sair dos quartos onde dormiam e dos pinheiros das montanhas que rodeavam Madeira poderem continuar a dar frescura ao ambiente da zona.
Sendo o único carpinteiro de Madeira, José tinha a função de fazer e reparar os tais vinte porcento de portas da aldeia. Às diversas pedreiras existentes cabia construir as casas e as portas restantes. Era o modo de todos os habitantes terem emprego, a maioria trabalhava nas pedreiras, existiam comerciantes e agricultores, pastores e lenhadores, professores e funcionários da Junta, e ainda o padre e José. Não era uma aldeia perfeita, existiam problemas como há em tantas outras, era uma aldeia quase vulgar, com os seus arraiais, as suas festas do padroeiro com cantoras e bailarinas, foguetes e vacas de fogo, as únicas diferenças eram a existência de emprego para todos e o facto de ninguém necessitar de morar na grande cidade e tirar um curso para crescer, a vida tratava de ensinar tudo o que as pessoas não sabiam.
Como em todas as histórias, algo a rompeu o equilíbrio. Num belo dia de Março, com um calor abrasador, chegou a Madeira uma carrinha de caixa aberta que trazia um novo habitante para a aldeia. Era Joaquim, filho de outro Joaquim que emigrara para França em novo. Trazia placas de alumínio e estava disposto a abrir uma serralharia com as portas mais leves que existiam em todo o mundo. Passados uns meses a sua casa estava construída, tinha as portas de pedra obrigatórias, mas à vista de todos colocou uma enorme porta de alumínio resplandecente pintada a côr de rosa e dois portões também metálicos, pintados de amarelo para condizerem com o muro côr de laranja e os patinhos lilazes de porcelana que pôs à entrada. A sua oficina de serrelharia era dentro de casa, e a grande inovação tecnológica começou a atrair a população, que pretendia substituir as suas portas de pinho pelas de alumínio resplandecente.
Quem não gostou muito da ideia foi José, que via a sua clientela extinguir-se. A directiva da Junta de Freguesia exigia um mínimo de portas de pedra, mas não dizia que as restantes deveriam ser de madeira. Acabou por chegar a um dia que só tinha mais um trabalho a fazer, por sinal para o seu irmão, que com pena de José tinha pedido uma porta para a casota do seu cão. Quando o carpinteiro começou a trabalhar, olhou para a tábua de madeira com lágrimas nos olhos, tinha quarenta anos e muito que dar à vida, o que iria fazer depois? Pegou no serrote de pedra e começou a cortar a tábua com a força da tristeza, serrou-a num bater de asas e meia tábua caiu no chão com estrondo. Pousou o serrote e pegou nela com violência. Algo estava diferente, a tábua parecia levitar e a sua mão desaparecera. Deixou cair a madeira e num grito tentou estalar os dedos dessa mão, ouviu o som e ficou mais descansado. Não tinha serrado a mão, afinal de contas a mão desaparecida era a que segurava o serrote e não havia qualquer vestígio de sangue. O seu braço terminava no pulso, mas podia bater palmas e pentear o cabelo como antes.

Música?

Letra para a música "Com um brilhozinho nos Olhos" de Sérgio Godinho. Dedicada a todos aqueles que com uma unha grande no dedo mindinho para tirar a cera dos ouvidos conduzem aos domingos pelas estradas do nosso país, sem outro destino que não deliciarem-se em filas de trânsito.

"Com unha grande no dedo"

Com unha grande num dedo
abrias o carro
Pensavas em ver o mar
Terço no retrovisor
Abanando de lá para cá
como as moças do bar
Conheço tão bem esses teus sogros
Nunca se alegram
para onde foram, diz lá
É, Ontem era domingo
e dia mais precioso
que este não há

Com unha grande num dedo
Metemos o carro
na estrada, na estrada depois
ou seja, fizeram-se preces
Tocamos buzinas
Parecia um carro de bois
Amargos de boca, Amargas conversas
Musica Pimba, É tão boa É tão boa
E com unha grande num dedo
Pisamos as dunas
Como o faz qualquer pessoa

E o que é que foi que comeram?
E o que é que foi que comeram?
Isso soube-me a porco
Isso soube-me a porco
Isso soube-me a porco
Isso soube-me a porco
Eu pedi cabritinho
mas era um tasco foleiro
Aquilo era Anho
Aquilo era Anho
Aquilo era Anho
Aquilo era Anho
Portanto
Isso soube-me a porco

Com unha grande no dedo
Entramos no carro
pusemos a rádio no "on"
assim era uma boa maneira
de poder saber
os resultados da bola
e, olha, não posso contar
mas sei que tu sabes
a sogra que eu ganhei
E com unha grande num dedo
ouvi chateado
O sermão que não te contei

Com unha grande num dedo
passeamos, sei lá
por onde nos passou pela tola
do estilo, na barra da Foz
Castro de S. Paio
Na praia jogámos à bola
e às dez para as três
viemos embora
A sogra ia à missa das sete
E com unha grande no dedo
rezar por nós
É o q'a velhota promete

E o que é que foi que comeram?
E o que é que foi que comeram?
Isso soube-me a porco
Isso soube-me a porco
Isso soube-me a porco
Isso soube-me a porco
Eu pedi cabritinho
já te tinha dito há pouco
Aquilo era Anho
Aquilo era Anho
Aquilo era Anho
Aquilo era Anho
Portanto
Isso soube-me a porco

E com unha grande num dedo
tentamos saber
para que a volta serviu
Onde fomos nós
onde queriamos ir
até que ela disse
A filha fugiu!
Encontrei-a longe
Bati-lhe, é certo,
mas um estalo na cara
não parte corações
Com unha grande num dedo
Passei um domingo
como passam dez milhões

Agradecimento

Recebemos e-mails dos blogues Papoila e Outro, eu, incentivando-nos a continuar. Muito Obrigado!

Deus

Uma nova ideia que fortalece o meu conceito de Deus. Se o Sr. Newton deu o seu nome à unidade de força por si inventada, se o Sr. Ampére deu o seu nome à unidade de intensidade de corrente por si inventada, se o Sr. Metro deu o seu nome à unidade de comprimento por si inventada (mesmo sabendo que em termos de importância eles são todos iguais ao Litro inventado pelo Sr. Litro), Deus também deu o seu nome a todas as unidades por si inventadas, e como tudo foi inventado por Deus, então tudo se chama Deus (também escrevi isto no tal romance que nunca mais acabo de rever).

Automóvel

Os automóveis não deviam ter este nome, deviam ser chamados Gasolinomóveis ou Gasoleomóveis, porque não se conseguem mover por si próprios, precisam de uma fonte de energia. Aliás, nada no universo se move sozinho, com uma única excepção, o tempo. E mesmo acerca deste tenho as minhas dúvidas.

quarta-feira, julho 30, 2003

Livro

Viver para Contá-la de Gabriel Garcia Marquez ou como o Realismo Mágico pode ser biografia.
O primeiro volume da história da vida do Nobel da Literatura de oitenta e dois, relata acontecimentos desde as batalhas travadas e peixinhos de ouro construídos pelo seu avô, coronel Nicolas Marquez (com todas as semelhanças com o coronel Aureliano Buendía ou aquele a quem ninguém lhe escrevia) até a uma viagem à Suiça como repórter quando o escritor colombiano estava perto de completar trinta anos. Embora não seja sublime como Cem Anos de Solidão (o estilo é bastante diferente e menos imaginativo, como é óbvio), Viver para Contá-la tem uma genialidade que funde a biografia e o romance, tal a riqueza das vivências do autor e a sua capacidade de contar histórias, nem que seja a partir de um prego. O realismo mágico que criou, apesar de inesperado (ou não?) está presente sobretudo na infância e a realidade de Macondo entrelaça-se nos locais por onde passou, nos seus antepassados e nas suas vivências. A não perder, mas só após a leitura prévia das mais importantes obras de Gabriel Garcia Marquez.

Poema

Máquina do Tempo

Se um dia o Homem
Inventasse uma máquina do tempo
Aí sim, teria saudade

Se juntasse um fio de tempo
uma roldana de sonho
uma manivela que fizesse girar o mundo
e um espelho veloz como a luz
voaria para o passado e
Aí sim teria saudade

Poderia dizer o que não disse
Fazer o que não fiz
E numa lágrima de parafuso
Abraçar o que não abracei
E numa música de engrenagem
cantar o que não cantei
E ser mole como aço
E amar como uma anilha ama
Num segundo tudo viveria,
se a máquina de metal
me atirasse para o passado

Mas como o Homem ainda não inventou
E o que vivi está vivido
Ficarei sempre no presente
Corrente com corpo de gente
Um rio que teve nascente
e uma só foz no futuro

Um rio não corre para trás
Mas se corresse
Aí sim, teria saudade

terça-feira, julho 29, 2003

Slogan

Se estiver a conduzir não fale ao telemóvel, envie SMS. (Ninguém lhe proíbe)

Advérbio

Evidentemente, os textos escritos com uma qualidade exageradamente execrável, que utilizam abundantemente advérbios de modo naturalmente acabados em mente, são idubitavelmente um alvo a abater nesta nota. Para termos autoridade moral, este tipo de advérbios serão obviamente colocados de lado neste blog, pela razão que referimos anteriormente,. Excepcionalmente este texto utiliza-os, dir-se-ia exageradamente, mas infelizmente para esta estirpe de palavras horrivelmente presente em outros locais, possivelmente nunca mais semelhante atentado ao português será repetido aqui. Tenho ideias diametralmente opostas a quem pensa que enriquece totalmente um texto com advérbios. Mas concordo que independentemente do que eu possa pensar, eles acabam por ser uma metáfora do país que temos, um país que não é de nomes, verbos ou adjectivos, mas sim de advérbios descaradamente inúteis e insípidos

Deus

Uma ideia de Deus. Se Deus é omnipresente e omnipotente, então Deus é toda a matéria. Vejamos: se eu estiver num local, estou a ocupá-lo em volumetria, logo eu sou esse local e tenho um poder completo sobre ele, mesmo que estejamos perante um poder endócrino. Deus é tudo o que existe, toda a natureza, todo o Universo, e mesmo o homem, que não deixa de ser uma criação sua (A matéria que é Deus cria-se e recria-se a si própria). É este o conceito divino que utilizo no romance que nunca mais acabo de rever. Um Deus revoltado com a própria criação, que não sendo à sua imagem (mas sim uma das suas múltiplas imagens) acaba por ser algo que está a destruí-lo.

segunda-feira, julho 28, 2003

Agradecimento

O blogue Tudo Menos Política soube do nosso link e agradeceu não só na sua página como num mail que nos enviaram. Um gesto sempre simpático.

Palestina

Este blogue é mais literário que político, mas como pretendemos dar liberdade de criação em todos os aspectos, queria tecer umas considerações à situação no Médio Oriente. Francisco José Viegas, no seu blogue, defende a criação do estado Judaico. Como muitas vezes acontece com os defensores da causa israelita, refere as atrocidades que no passado tiraram a vida a milhões de Judeus, como uma das justificações para a criação de um Estado Judaico no local onde se este se encontra na actualidade. Penso que os Judeus merecem, como todos os povos, um estado próprio, ou pelo menos, o direito à auto-determinação. É um povo que tem como suas grandes virtudes as diásporas que fizeram sem nunca perderem raízes, sofrendo perseguições em todos os séculos até ao actual. Mas nenhum povo pode ter mais direitos que outro evocando um passado de sofrimento. O sofrimento de ontem acaba por se estender até hoje, havendo dois povos que acreditam no mesmo Deus a chorar mortes desnecessárias (A morte nunca é necessária). Ambos têm culpa, mas se nos campos de concentração nazis, Judeus Alemães passaram pelo que toda a humanidade recorda para nunca repetir e por outro lado os Judeus Russos foram perseguidos sem piedade anos mais tarde na sua própria Rússia, agora os palestinianos também são perseguidos pelas balas mortíferas de borracha na Palestina e os israelitas pelos homens bomba em Israel. Quando criaram o Estado de Israel deviam ter pensado que não é fácil vivermos numa qualquer casa confortáveis, e de um dia para o outro, sermos expulsos e atirados para o chão da rua por um soldado acabado de chegar de Moscovo ou de São Petersburgo e que apenas Russo sabe falar. Nem Arafat nem Sharon podem dizer que sofreram comparando com um vulgar Palestiniano ou Israelita que não pediu a ninguém para estar sob uma chuva de balas e pedras. Aliás, se não houvessem nem Arafat’s nem Sharon’s, nem funtamentalismos, um israelita e um palestiniano poderiam tomar um café numa qualquer esplanada e falar do jogo de futebol entre o Gaza e o Maccabi, e depois, passeando perto do Muro das Lamentações partilhariam a magia do local sem dizerem uma única palavra. As pessoas não necessitam de saber que o solo em que pisam pertence a um estado ou outro, precisam é de viver bem e em paz, veja-se o caso do País Basco, poucos Bascos apoiam a ETA, mas também poucos Bascos se sentem Espanhois, isto porque vivem bem com os vizinhos, com orgulho nas raízes e com uma paz relativa. Os homens amam a terra onde vivem, a língua que falam, as pessoas que conhecem, as famílias que têm, e a partir do momento em que algo se altera nestes parâmetros do amor, o caldo entorna-se e o líquido que escorre pelo chão é vermelho.
O novo anti-semitismo está a crescer, sem dúvida, a uma velocidade só comparável com o crescimento do novo anti-islamismo. Parece que só quando acabarem os –ismos (com o prefixo anti ou sem ele) e cada um pensar por si sem seguidismos (seguidismo também é um -ismo) é que será encontrada uma solução boa para todas as partes.

domingo, julho 27, 2003

Anti-depressivos

A venda de anti-depressivos subiu para o dobro. A economia mundial vai agradecer: empresas farmaceuticas que poderão dar emprego a muitas mais pessoas nos próximos dez ou vinte anos, companhias aéreas vão ver as receitas de viagens para destinos caribenhos subirem, empresas petroliferas vão vender mais combustível para aviões, governos totalitários exportadores que terão a sua quota parte de lucros. Enfim, o mundo será mais feliz com a depressão global.

Ouriço

O ouriço é ouriço porque a Sofia lembrou-se de lhe chamar ouriço. O leitor pode tirar as interpretações que quiser mas o blogue é ouriço porque calhou, e nem sequer somos de Espinho!
Pode ter sido uma escolha aleatória, mas este nome é muito sugestivo para algumas empresas, já rebemos mails a dizer "Caro Ouriço Cacheiro:(...) Verlag Dashöfer além de lhe oferecer a possibilidade de subscrever gratuitamente estas e-newsletters ainda lhe dá a possibilidade de ganhar fabulosos prémios.". Afinal ainda existem muitas pessoas que acreditam que os animais falam, mais do que isso, que têm computadores nas suas casas da floresta e sonham lá instalar um Kit de Cinema, para poderem vêr DêVêDês do Nicolas Cacheiro ou Ouriço Welles.
Mas ninguém do blogue é Ouriço da Parte da Mãe nem Cacheiro da parte do Pai (Se fosse em Espanha era ao contrário) e avisamos desde já a empresa Verlag Dashofer que não temos espinhos nas costas, não somos quadrúpedes e apesar de não sermos alemães como eles, somos um bocado mais inteligentes que um Ouriço Cacheiro.
É melhor tentarem enviar mensagens para o Louva-a-Deus vendendo velinhas e imagens de nossa senhora de Fátima que pode ser que ele goste.

P.S. Acrescente-se que eles devem pensar que os Ouriços Cacheiros são burros, nem sequer têm um link para retirar o e-mail da sua mailing-list.

sábado, julho 26, 2003

Escrever

Uma citação de Rilke que aparece no Vivir para contarla de Garcia Marquez: «Se crê que é capaz de viver sem escrever, não escreva»

Azul

Aqui há um ano atrás, apareceu num site espanhol um conto que diziam ser de José Saramago. Nunca ninguém provou que o fosse, mas o que interessa neste caso, era o pedido que faziam aos leitores para que estes dessem uma continuação ao dito conto. Eis o conto (en castellano) e de seguida a minha proposta:

Anoche hice un viaje a Marte. Pasé allí diez años (si la noche dura en los polos seis meses, no sé por qué no han de caber diez años en una noche marciana) y tomé muchas notas sobre la vida que allí llevan. Me comprometí a no divulgar los secretos de los marcianos, pero voy a faltar a mi palabra. Soy hombre y deseo contribuir, en la medida de mis escasas fuerzas, al progreso de la humanidad a la que enorgullece pertenecer. Este punto es muy, muy importante. Y espero, si algún día los marcianos me vienen a pedir cuentas de mis actos, es decir, del perjuicio cometido, que los no sé cuantos billones de hombres y mujeres que hay en la tierra se apresten, todos, a mi defensa.

En Marte, por ejemplo, cada marciano es responsable de todos los marcianos. No estoy seguro de haber entendido bien qué quiere decir esto, pero mientras estuve allí (y fueron diez años, repito), nunca vi que un marciano se encogiera de hombros. (He de aclarar que los marcianos no tiene hombros, pero seguro que el lector me entiende.) Otra cosa que me gustó en Marte es que no hay guerras. Nunca las hubo. No sé como se las arreglan y tampoco ellos supieron explicármelo; quizá porque yo no fui capaz de aclararles qué es una guerra, según los patrones de la tierra. Hasta cuando les mostré dos animales salvajes luchando (también los hay en Marte), con grandes rugidos y dentelladas siguieron sin entenderlo. A todas mis tentativas de explicación por analogía, respondían que los animales son animales y los marcianos son marcianos. Y desistí. Fue la única vez que casi dudé de la inteligencia de aquella gente.

Con todo, lo que más me desorientó en Marte fue el no saber qué era campo y qué era ciudad. Para un terrestre eso es una experiencia muy desagradable, os lo aseguro. Acaba uno por habituarse, pero se tarda. Al fin, ya no me causaba extrañeza alguna ver un gran hospital o un gran museo o una gran universidad (los marcianos tienen esto, como nosotros) en lugares para mí inesperados. Al principio, cuando yo pedía explicaciones, la respuesta era siempre la misma: el hospital, la universidad, el museo estaban allí porque eran precisos. Tantas veces me dieron esta respuesta que pensé que mejor sería aceptar con naturalidad, por ejemplo, la existencia de una escuela, con diez profesores marcianos, en un sitio donde solo había un niño, también marciano, claro. No pude callar, desde luego, que me parecía un desperdicio que hubiera diez profesores para un alumno, pero ni así los convencí. Me respondieron que cada profesor enseñaba una asignatura diferente, y que la cosa era lógica.

En Marte les impresionó saber que en la tierra hay siete colores fundamentales de los que se pueden sacar millones de tonos. Allí sólo hay dos: blanco y negro (con todas las gradaciones intermedias), y ellos sospecharon siempre que habría más. Me aseguraron que era lo único que les faltaba para ser completamente felices. Y aunque me hicieron jurar que no hablaría de lo que por allá vi, estoy seguro de que cambiarían todos los secretos de Marte por el proceso de obtener un azul.

Cuando salí de Marte, nadie vino a acompañarme a la puerta. Creo que, en el fondo, no nos hacen caso. Ven de lejos nuestro planeta, pero están muy ocupados con sus propios asuntos. Me dijeron que no pensarán en viajes espaciales hasta que no conozcan todos los colores. Es extraño, ¿no? Por mi parte, ahora tengo mis dudas. Podría llevarles un pedazo de azul (un jirón de cielo o un pedazo de mar), pero ¿y después? Seguro que se nos vienen aquí, y tengo la impresión de que esto no les va a gustar.

Ahora la continuación

Passou-se a noite, passaram dez anos. Como estaria o meu planeta após tanto tempo sem mim, teria ganho côr com a música e a poesia? Teria perdido côr com a guerra e a miséria? Uma noite de dez anos é sem dúvida uma noite de Inverno,
(Se fosse de Verão o dia é que durava dez anos, a noite ficava-se pelos sete ou oito)
e quando cheguei a manhã era chuvosa, com alguns guarda-chuvas e impermeáveis, com muitos carros parados, de faróis acesos, com movimentos repetitivos dos limpa pára-brisas, num hipnotizar contínuo de todas as almas terrestres. Tinha passado uma noite,
(ou dez anos, tanto faz)
e nada, nada tinha mudado, uma mão invisível a empurrar cada ser humano para o local de trabalho, os mesmos semblantes, a mesma alegria falsa, o mesmo timbre nas discussões, tudo igual. Perguntei para mim, estive cá ontem ou há dez anos? As duas respostas estavam correctas, dez anos na terra são exactamente iguais a uma noite, apenas mais umas brancas no cabelo, mais uma cicatriz ou outra, um automóvel novo, um filho na universidade, um aumento de ordenado, mas a mesma vida cinzenta. Cinzento... Faz-me lembrar Marte, eles apenas conheciam o cinzento em vários tons, para além do preto e do branco. Mas eu não, vivo na Terra, aquele planeta que é azul por fora e cinzento por dentro. Abri os olhos, olhei à minha volta e tornei-me Marciano, é tudo cinzento. Laranjas cinzentas, Guarda-chuvas cinzentos, automóveis cinzentos, violetas cinebntas, rosas cinzentas, caras cinzentas, alegrias cinzentas, sorrisos cinzentos, olhos cinzentos, enfim, em duas palavras, massa cinzenta. Descobri o desinteresse que é a terra, acordar, correr para o emprego, comer e dormir. Acordar, correr para o emprego comer e dormir. Acordar
(hoje é sábado)
comer, ver televisão, comer e dormir. Acordar, levar os sogros a uma visita à beira-mar, comer com eles, insistir em pagar a conta, regressar e dormir.
Como é que estas pessoas conseguem ver alguma côr? As côres só lhes servem para os semáforos, nada mais, na terra não existe o daltonismo, existe a cegueira. Não há verde da relva, azul do céu ou amarelo da praia, há cinzento. Não há castanho nos olhares, ciano nos pensamentos ou magenta nos sentimentos, há cinzento. Como é que eles descobriram as cores? Como é que eu distinguia as cores no dia de ontem?
(ou há dez anos?)
Não vejo, não posso admitir que elas existam, e aquela explicação do semáforo é demasiado ténue. Decidi caminhar, pelas ruas cinzentas, pela chuva cinzenta, de água cinzenta, com átomos cinzentos de oxigénio cinzento e hidrogénio cinzento. Tomei um pequeno almoço cinzento numa confeitaria cinzenta e entrei em nova rua cinzenta. Sentia algo estranho em mim,
(é normal, não é todas as noites que se fica daltónico)
e pensava como iria viver depois desta visita a Marte, inundado pela infelicidade, e sem qualquer hipótese de regressar
(Tantas vezes tinha sido proferida a palavra cinzento na narrativa que a Associação de Viajantes Imaginários da qual eu fazia parte expulsou-me por ter violado os seus estatutos.)
De repente ouvi um disparo. Um homem com um lenço na cabeça caia e no fim da minha rua cinzenta um carro militar retirava-se. Corri para o homem que jazia no chão, deitado sobre uma poça de sangue vermelho, de um prédio saiu uma mulher de túnica com o filho ao colo chorando, abraçou-se a ele e eu também chorei. Mesmo sem conhecê-lo, mesmo não sabendo quem era, apenas por ver aquele sangue vermelho sob a chuva. Sim, o sangue era vermelho não tinha dúvidas, perdi o daltonismo, e sei bem porquê.
Os habitantes da terra conhecem as côres porque viram o vermelho do sangue, foi essa a côr com que nasceram, e a côr que os há de acompanhar por toda a vida. Tinha-me esquecido da revolta interior, da raiva e da injustiça quando estive em Marte. Tinha-me esquecido do sangue. Os marcianos nunca viram sangue, nunca mataram ninguém e por isso não sabem as côres, trocava todas as côres e tons, por muito que me custasse essa ausência, pela vida deste homem que caiu aqui, apenas porque tem outra côr e usa um lenço na cabeça.
Levantei-me e pensei, vou regressar.
Mas não regressei, não vou virar as costas ao meu mundo, vou passar uma noite inteira, dez anos, dez séculos a lutar contra a côr vermelha que se dissolve na água da chuva cinzenta, e quem sabe se no fim dessa luta, na qual o mais importante é mudar a mentalidade das pessoas, possamos ser quase iguais aos Marcianos, mas distinguindo o arco-íris de um sorriso de uma criança e o azul do céu a beijar o mar

quinta-feira, julho 24, 2003

Este é o primeiro texto do Blog, um pequeno passo para mim e um ainda mais pequeno passo para a humanidade!