terça-feira, outubro 19, 2004

Homo Portucalensis

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Falo-vos agora deste povo estranho que conheci quando cheguei a Portugal: os portugueses.

O Homo Portucalensis parece ser proveniente de um fenómeno regressivo de especiação do Homo Sapiens Sapiens que poderia contradizer as teorias evolucionistas de Darwin. No entanto, esta aparente contradição não tem rigor científico, pois o Homo Portucalensis tem melhores características de sobrevivência não só em países periféricos à beira-mar plantados como noutros países, mas sobre isso falarei mais tarde.

O Homo Portucalensis apresenta, na actualidade, duas linhas evolutivas. A mais antiga, com mais de 40 anos geológicos, tem como características mais visíveis um farfalhudo conjunto de pêlos por baixo do nariz, uma gargantilha dourada, uma camisola cadeada branca, uma diferença de coloração cutânea do braço para o antebraço e um coração desbotado nesse mesmo antebraço rodeado por alguns sinais que dizem “AMOR DE MÃE”, seguidos de um “ANGOLA” e um conjunto de números que penso serem identificadores do ser em causa. Entretanto, nos anos geológicos mais recentes, surgiu uma nova linha evolutiva, que mantém alguns traços dos seus ancestrais, como a gargantilha, mas o coração, o “AMOR DE MÃE”, o “ANGOLA” e o número saíram do antebraço e saltaram para costas e adquiriram a forma de letras chinesas, signos do Zodíaco e sinais de uma qualquer civilização que só os tatuadores conhecem. O boné com uma pala bem arredondada e o brinco na orelha esquerda são outros sinais deste novo Homo Portucalensis, acrescentando-se o cabelo rapado ou oxigenado e as mãos nos bolsos. Também existem outras linhas de Homo Portucalensis mas sendo minoritárias não merecem um estudo científico pormenorizado.

O Homo Portucalensis, em todas as suas linhas evolutivas, é conhecido pela sua capacidade industrial de produzir saliva, sendo por isso habitual vermos um exemplar desta espécie cuspindo o que tem em excesso. Na calçada a saliva não se sente sozinha, está acompanhada por filtros de cigarros, latas, dejectos de animais de companhia do Homo Portucalensis, e numa relação simbiótica todos lutam por uma sobrevivência longe da reciclagem e incineração. Ao lado, os automóveis são conduzidos por um povo que tem dez corredores de Fórmula 1 por cada dez Homo Portucalensis. Em Portugal, quando o semáforo passa de vermelho para verde não é sinal para o Homo Portucalensis colocar o pé no acelerador e arrancar, é altura para colocar a mão na buzina e apitar.

O Homo Portucalensis também tem uma qualidade mítica. O seu apego ao passado de uma forma doentia. Para este ser, as travessias transatlânticas ainda são feitas à custa de barcos à vela, o seu império ainda é meio mundo e o seu clube com mais adeptos ainda vence jogos internacionais. Inventou uma estranha palavra chamada “Saudade”, com a qual o novo conceito “Produtividade” entra muitas vezes em conflito. Mas também, para que se deseja a produtividade quando o Homo Portucalensis é um ser que deixa tudo para o último dia, utilizando depois a famosa arte do desenrascanço? Podem falar em pouca produtividade, pouco profissionalismo, mas ninguém pode negar que o Homo Portucalensis é sempre capaz de superar os problemas, sem ciência, sem técnica mas utilizando uma arte inacessível aos demais e cuja existência está relacionada com o êxito evolucionista desta espécie. Todos os trabalhos que aparentam ser impossíveis para o mais comum Homo Sapiens Sapiens, o Homo Portucalensis consegue realizá-los, desde que o prazo de execução já tenha terminado. Esta revolução evolucionista atravessa todas as classes sociais do Homo Portucalensis, todas as idades, ambos os géneros, todas as linhas evolutivas e, como referi no início deste ensaio, inclusive a diáspora do Homo Portucalensis personifica o conceito de desenrascanço. Um ser desta espécie, mesmo longe do seu habitat natural utiliza o desenrascanço para abrir uma janela de oportunidade com um atestado médico. Se essa janela tiver um espaçamento superior a sete dias, então o Homo Portucalensis apela à qualidade-saudade e regressa ao seu país para mostrar o seu automóvel com um F e um P colados na mala, um terço e um pinheiro de cheiro no retrovisor e bolinhas de madeira a forrar os bancos. Mas não é apenas esse atestado médico a efectivar o desenrascanço, a capacidade de trazer numa única viatura patinhos de porcelana, luzinhas de natal e leões de pedra dourados para decorarem o jardim da sua casa cor-de-rosa é por si só um desenrascanço. No entanto, a capacidade de falar com as suas crias em francês e de insultá-las em palavrões portugueses quando se portam mal, não está incluída neste conceito. Talvez seja de difícil compreensão o desenrascanço Homoportucalensiano, por isso vou acrescentar o exemplo de utilizar como quarto de banho todos os locais possíveis e impossíveis. Existe inclusive uma lenda, que nas profundezas da Atlântida ainda está um grupo de portugueses a urinar, estando eles por detrás da catástrofe que afundou esta civilização. Sim, porque a união entre vários Homo Portucalensis vai ao ponto de os colocar em grupo mesmo quando se dedicam a tarefas excretoras. No caso das fêmeas os grupos são constituídos apenas por dois exemplares da espécie, no caso dos machos, os grupos são muito maiores, fazendo mesmo estranhas competições entre si. Talvez este conceito do um Homo Portucalensis acompanhado sempre por dois ou três Homo Portucalensis seja a génese de momentos inolvidáveis em que os dois ou três Homo Portucalensis eram dois ou três milhões vestidos de branco e cheios de saudade de desconhecidos, vivendo do outro lado do planeta e que nunca mais voltariam. Podem criticar o Homo Portucalensis por tudo o que referi, mas quando ele se une, pode ser derrotado mas não se esquece dos amigos, nem vira as costas quando um qualquer Homo Sapiens Sapiens não se consegue desenrascar e lhe pede ajuda.

1 espinhos:

Blogger eduardo disse...

Bom dia.
É o Homo Portucalensis no seu melhor. Acrescentando a navalhita na algibeira e a propensão para cantar o fado vadio nos becos desta Alfama gigantesca, então ficava a matar.
Um abraço, Miguel.

3:55 da tarde  

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