quinta-feira, agosto 07, 2003

Conto

Mão Invisível (Versão completa)

José era carpinteiro porque seguira a arte do pai, aliás o seu nome não tinha caído do céu, era uma homenagem que o progenitor fez ao mais famoso profissional da área. A sua carpintaria ficava perto do centro da aldeia de Madeira. Era uma aldeia que tinha nome de ilha, mas o único mar que a rodeava era um mar de montanhas e de isolamento. As casas de Madeira, como o nome indica, eram todas de pedra e de apenas um piso, incluindo a própria carpintaria de José. As casas tinham este material porque todos os habitantes da povoação sabiam que para construir casas de pedra não necessitavam de matar nenhum ser vivo. Então, porque é que existe uma carpintaria em Madeira se ninguém quer matar seres vivos? Porque as portas de pedra que as pedreiras faziam eram demasiado pesadas para a população idosa as abrir. E como em Madeira não existia mais nenhuma matéria prima para além das rochas e do material homólogo à localidade, tinham que ser construídas portas de madeira. Foi assim estabelecido um código de ética pela Junta de Freguesia, postulava que cada casa teria que possuir oitenta porcento de portas de pedra e vinte porcento de portas de madeira. Era a forma dos idosos poderem sair dos quartos onde dormiam e dos pinheiros das montanhas que rodeavam Madeira poderem continuar a dar frescura ao ambiente da zona.
Sendo o único carpinteiro de Madeira, José tinha a função de fazer e reparar os tais vinte porcento de portas da aldeia. Às diversas pedreiras existentes cabia construir as casas e as portas restantes. Era o modo de todos os habitantes terem emprego, a maioria trabalhava nas pedreiras, existiam comerciantes e agricultores, pastores e lenhadores, professores e funcionários da Junta, e ainda o padre e José. Não era uma aldeia perfeita, existiam problemas como há em tantas outras, era uma aldeia quase vulgar, com os seus arraiais, as suas festas do padroeiro com cantoras e bailarinas, foguetes e vacas de fogo, as únicas diferenças eram a existência de emprego para todos e o facto de ninguém necessitar de morar na Grande Cidade e tirar um curso para crescer, a vida tratava de ensinar tudo o que as pessoas não sabiam.
Como em todas as histórias, algo rompeu o equilíbrio. Num belo dia de Março, com um calor abrasador, chegou a Madeira uma carrinha de caixa aberta que trazia um novo habitante para a aldeia. Era Joaquim, filho de outro Joaquim que emigrara para França em novo. Trazia placas de alumínio e estava disposto a abrir uma serralharia com as portas mais leves que existiam em todo o mundo. Passados uns meses a sua casa estava construída, tinha as portas de pedra obrigatórias, mas à vista de todos colocou uma enorme porta de alumínio resplandecente pintada a côr de rosa e dois portões também metálicos, pintados de amarelo para condizerem com o muro côr de laranja e os patinhos lilazes de porcelana que pôs à entrada. A sua oficina de serrelharia era dentro de casa, e a grande inovação tecnológica começou a atrair a população, que pretendia substituir as suas portas de pinho pelas de alumínio resplandecente.
Quem não gostou muito da ideia foi José, que via a sua clientela extinguir-se. A directiva da Junta de Freguesia exigia um mínimo de portas de pedra, mas não dizia que as restantes deveriam ser de madeira. Acabou por chegar ao dia em que só tinha mais um trabalho a fazer, por sinal para o seu irmão, que com pena de José tinha pedido uma porta para a casota do seu cão. Quando o carpinteiro começou a trabalhar, olhou para a tábua de madeira com lágrimas nos olhos, José tinha quarenta anos e muito que dar à vida, o que iria fazer depois? Pegou no serrote de pedra e começou a cortar a tábua com a força da tristeza, serrou-a num bater de asas e meia tábua caiu no chão com estrondo. Pousou o serrote e pegou nela com violência. Algo estava diferente, a tábua parecia levitar e a sua mão desaparecera. Deixou cair a madeira e num grito tentou estalar os dedos dessa mão, ouviu o som e ficou mais descansado. Não tinha serrado a mão, afinal a mão desaparecida era a que segurava o serrote e não havia qualquer vestígio de sangue. O seu braço terminava no pulso, mas podia bater palmas e pentear o cabelo como antes.
Correu para dentro de casa, foi ao quarto de banho e o espelho não enganava, a mão tinha desaparecido. Com um alfinete picou o que seria o dedo polegar, sentiu uma dor espinhosa e um liquido quente a jorrar, mas nada visível, a existência da mão resumia-se a quatro sentidos, o quinto tinha ficado algures junto da futura porta da casota do cão.
Como bom católico que era, José quis logo falar com o padre acerca da sua patologia. Se existe a doença dos pezinhos então esta seria a doença da mãozinha desaparecidinha. Nem o senhor padre conhecia algo assim, tinha cumprimentado José sem olhar para a mão e quando este a mostrou, o sacerdote nem queria acreditar no que não via.
-É um sinal de Deus, Ele quer-te dizer que nunca soubeste dar a mão a quem precisa, por isso retirou, não deste o devido uso.
-Mas Ele não me retirou a mão, ela continua cá mesmo tendo desaparecido.
-É porque Deus te quer dar uma segunda a oportunidade, utiliza-a para ajudar os outros e a tua mão reaparecerá.
José, olhando para a mão que não via, despediu-se do padre e começou a pensar no que este lhe dissera. Pareciam argumentos inacreditáveis, não tinham qualquer nexo, porque haveria Deus de escolher José para ter uma mão invisível? Já não bastava o fim do negócio que ainda ia ficar com a vida amputada de esperanças, o destino era tão padrasto. Mas se o Padre disse que José devia dar a mão a mais alguém é porque tem razão. Mesmo que não o pareça. Deus devia ter escolhido o pároco da aldeia para seu interlocutor, às tantas apareceu num sonho e disse:
-O José vai ter uma mão invisível, diz-lhe para ajudar os outros.
-Assim o farei Senhor
Por isso é que os padres têm uma vocação especial, Deus deve-lhes dizer estas coisas, pensou José apóss de ter imaginado o sonho do pároco. Nada mais restou ao carpinteiro do que procurar pessoas por toda a aldeia para ajudar utilizando a sua mão invisível. Encontrou algumas velhinhas que queriam atravessar a estrada de pedra e ajudou-as a caminhar, encontrou alguns gatos em cima das árvores e ajudou-os a descer, encontrou algumas crianças à procura de uma bola de futebol e ajudou-as a encontrar, encontrou o serralheiro que lhe estragou o negócio e não o ajudou, deu-lhe um soco no nariz. Depois foi ajudar as velhinhas que tinham atravessado a rua e que queriam regressar ao outro lado, os gatos que afinal não queriam estar cá em baixo mas sim em cima das árvores e as crianças que afinal estavam à procura de uma bola de básquete e não de futebol. O serralheiro não voltou a encontrar porque tinha ido para o hospital e a mão invisível, invisível estava. Esteve um dia inteiro tentando ajudar as pessoas, mas depois chegou à conclusão que a utilidade da sua mão era nula. Desde que se tornara invisível, todas as ajudas eram infrutíferas, erradas e às vezes até desrespeitadoras, caso de uma velhinha que não queria atravessar nenhuma rua e que a mão arrastou-a para o outro lado sem complacências e sem o controlo de José.
José sentiu que a mão invisível não era capaz de ajudar ninguém, não conseguia sequer cortar uma nova tábua para a casota do cão, a mão invisível não servia para nada na aldeia.
-E eu, sirvo para alguma coisa?
Perguntou José à sua mão. Ela não lhe respondeu, porque se não servia para nada então também não servia para falar. Por isso o ex-carpinteiro decidiu ir à cidade para ver se podia dar um novo destino à sua vida, talvez lá encontrasse quem lhe desse uma mão. Tinha esperança de encontrar uma daquelas empresas fictícias que lavam dinheiro com mão de obra invisível, ele seria a solução para os seus problemas. Como José não tinha morrido, ainda tinha essa esperança sobrevivente quando estava na paragem de autocarro à espera do transporte para a cidade. O pior aconteceu quando chegou o veículo, o autocarro estava cheio e ninguém quis sair para entrar uma pessoa com a doença da mãozinha desaparecidinha, ninguém se deslocou para a porta de saída, e o autocarro seguiu viagem sem José. Agora via o fim a chegar, só na semana seguinte haveria um novo autocarro que o levasse à cidade, e decerto também estaria cheio, a desilusão era enorme, de dimensões que começavam a atingir a linha do desespero.
As lágrimas chegaram a casa e com elas vinha José, enxugou os olhos mas as gotículas de água pareciam suspensas no ar quando olhou para o lugar da mão. Teve que limpar as lágrimas na cozinha e quando estava a secá-las viu algo que podia mudar a sua vida, as luvas de borracha. Pegou numa delas e escondeu a sua mão invisível, agora estava ali uma luva que dava forma ao membro desaparecido. Não hesitou no momento seguinte, a carpintaria estava à sua espera, era a altura de testar o regresso de uma mão visível. Amarela, mas visível. A luva pegou no serrote e cortou as tábuas a metade, depois cortou essas metades a meio, continuou a obra, cortando-as ao quadrado, ao cubo, à quarta e à quinta, e só parou quando existiam milhares de pedacinhos espalhados pelo seu local de trabalho. Juntou-os e pressionou-os, estes não se fizeram rogados e uniram-se como os homens nunca se conseguiram unir. Tinha inventado um novo material mais leve que a madeira, mais barato que o alumínio e decidiu dar-lhe o nome de Contraplacado. Substituiu de seguida a porta de sua casa por uma de Contraplacado para que todos vissem, ao fim do dia chegaram as primeiras encomendas. O serralheiro estava no hospital com a cana do nariz partida, e a construção civil precisava de novas portas.Todos ficaram impressionados com a leveza e o baixo custo das portas de Contraplacado e ao fim de dois dias não existiam portas de alumínio na aldeia exceptuando as da casa do serralheiro. Ninguém mais soube ao certo o que aconteceu a Joaquim, apenas se ouviram boatos. Disseram que construiu um nariz de alumínio e abriu na cidade um negócio com todo o tipo de próteses metálicas, mas isso nunca foi provado, pois ninguém mais conseguiu ir à cidade porque o autocarro estava sempre cheio.